quinta-feira, 30 de setembro de 2021

TRAVESSIA

  

É de manhã ... um raio rosa, desliza da fresta da janela para a cama branca.  Toca no cabelo dele, e o faz abrir uma pálpebra.

Então ele deixa entrar a luz em seus olhos azuis. Olha e ri, porque o raio parece dizer a ele:

-Vamos ser felizes!

Ele colocava na radiola o disco da Elis Regina na faixa “Travessia” do Milton Nascimento e Fernando Brant, com arranjo do Cesar Camargo Mariano, para me despertar.

 O meu espreguiçar fazia que cada pelo do meu corpo nu e todos os poros, tremessem e respirassem felicidade.

De tudo que vivemos, esta é a lembrança que ficou marcada em mim.

Tomamos o café, que ele, preparou em silêncio. Os olhos falavam o que a boca calava.

Saímos em sentido opostos, ele ia cuidar do sagrado e eu do profano.

Muitas vezes choramos ouvindo Elis, ele sabia que eu gostava. Ela nos fazia transitar entre o profano e o sagrado num átimo. Quando ele me levou para conhecer o mar, ouvimos todas as músicas que ela cantava no trajeto.

"O Cavaleiro e os Moinhos” éramos nós, "Um por Todos" nosso lema. "Conversando no Bar” e tomando uma cerveja era a nossa "Fascinação". "Boa Palavra" ele tinha, nas duas línguas que falava, mesmo se fosse "Pra Dizer Adeus" era "Carinhoso". Na nossa “Andança” fomos ao "Corcovado", tudo como "Fotografia", "Inútil Paisagem", "Pois É” eu só tinha olhos para ele. Era um "Amor até o Fim" "Por toda a Minha Vida" "O Que Tinha de Ser" "Só Tinha de Ser com Você". Mas como tudo na vida tem fim, como um "Veleiro" "Triste” ouve um "Soneto de Separação" sobrando apenas um "Retrato em Branco e Preto". 

 

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

FITA VERDE NO CABELO

 


Sempre gostei da intertextualidade. No curso de letras tive duas professoras de teoria da literatura que me estimularam neste gostar. Ivete Lara Camargos Walty e Maria Helena Rabelo campos. Um dos trabalhos feitos por elas foi uma leitura comparativa das histórias “ Chapeuzinho Vermelho e Chapeuzinho Amarelo” a partir de sua relação intertextual. Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque e a tradicional Chapeuzinho Vermelho de Charles Perrault, que depois foi reformulada pelos irmãos Grimm.

 

Existem muitas teorias por trás dessa história e versões bem mais adultas para o roteiro do conto infantil. O escritor francês, Charles Perrault foi o primeiro a mencionar a história de Chapeuzinho Vermelho, em 1697, fazendo com que a narrativa chegasse à Europa pela primeira vez.

No ano de 1812, os irmãos Grimm reformularam a história para que ela ficasse mais adaptável para o mundo infantil, tirando toda a parte sangrenta da primeira versão, eles deixaram a história como conhecemos hoje.

Na lenda, a protagonista adolescente acabou de entrar na vida adulta, por isso a cor de sua capa é vermelha, remetendo ao sangue de sua primeira menstruação. Nas duas versões, sua mãe pede várias vezes que a filha não fale com ninguém, algo que a garota desobedece imediatamente, quando um lobo sugere que a menina pegue um atalho para levar flores para sua avó. As versões começam a mudar, quando o Lobo chega à casa da velhinha.

 

Nas versões originais transmitidas oralmente pelos camponeses, haviam vários elementos grotescos, sensuais e até mesmo obscenos que acabaram sendo suprimidos por narradores posteriores.

Nna história original, o bicho mata a avó, corta seu corpo, coloca em um prato como jantar e mantém seu sangue em uma garrafa como um vinho.

 

Mais sangue e carnificina em episódios de canibalismo, quando o vilão oferece para a menina a carne que está em seu prato. Sem questionar, a jovem o faz. Logo após o ato, o Lobo gargalha da menina informando que ela tinha acabado de cometer um dos maiores pecados: o canibalismo. Logo após, o animal devora Chapeuzinho. Sem nenhum caçador para salvá-la dessa vez.

 

 

João Guimarães Rosa, o nosso poeta do sertão, não ficou pra traz e também deu a sua contribuição recriando a história da nossa Chapeuzinho Vermelho. O seu final é surpreendente.

 

FITA VERDE NO CABELO

Nova velha estória de João Guimarães Rosa

Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo.

Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu, sôbre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.

Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo. Então, ela, mesma, era quem se dizia: –“Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou”. A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são.

E ela mesma resolveu escolher tomar êste caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeiínhas flôres, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa. Vinha sobejamente.

Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu: — “Quem é?”.

–“Sou eu…” — e Fita-Verde descansou a voz. — “Sou sua linda netinha, com cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou”.

Vai, a avó, difícil, disse: — “Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençoe”. Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou.

A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: — “Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo”. Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:

 

— “Vovòzinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!”

— “É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta…” — a avó murmurou.

— “Vovòzinha, mas que lábios, ai, tão roxeados!”

— “É porque não não vou nunca mais poder te beijar, minha neta…” — a avó suspirou.

— “Vovòzinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?”

— “É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha…” — a avó ainda gemeu.

Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.

Gritou: — “Vovòzinha, eu tenho medo do Lobo…”

Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.